quarta-feira, 20 de julho de 2011

Conhecendo alguns "Casos Famosos"

O Crime de Ilhéus




Fonte: Grandes Advogados, Grandes Julgamentos - Pedro Paulo Filho - Depto. Editorial OAB-SP

Sílvio Farias



O Professor Paulo José da Costa, de São Paulo, renomado criminalista, relatou um dos mais folclóricos eventos ocorridos no Tribunal do Júri, em crônica publicada pela imprensa paulista.


Contou que uma das vantagens que o Júri proporciona é o aprimoramento das inteligências dos que nele participam. A resposta pronta. A improvisação. A criatividade espetaculosa para surpreender o adversário desprevenido.


"As personagens são atores e autores, que vivem o drama que se desenrola momento a momento, sem saber o papel que irão criar e recitar no ato sucessivo. Nem tudo é improvisado, porém. Há também o preparo para o combate. Preparo técnico. Meticuloso. O estudo acurado dos autos. Folha a folha. Linha a linha. A análise de todos os ângulos do processo. A meditação dos pormenores e das entrelinhas. E o ensaio de previsibilidade da conduta adversária.


Vezes há, entretanto, que a inovação e a fantasia impregnam e impressionam de tal modo o comportamento da parte adversa que é impossível antever.


Como no caso de que nos ocuparemos hoje.


Aconteceu na Bahia. Mais precisamente em Ilhéus.


Um senhor não se relacionava. Vivia encerrado dentro de casa. Não abria as janelas nem de dia. Fechado pior que um molusco. Lia e estudava. Detestava ruídos. Almejava a paz, solidão e silêncio. Acima de tudo, silêncio, para sua meditação, para a sua paz interior.


Os garotos da redondeza sabiam de seus hábitos e predileções. Por isso mesmo, irritavam-no. De forma reiterada. Com impertinência, postavam-se embaixo de sua janela e punham-se a produzir toda série inimaginável de ruídos. Como na época não haviam ainda as "motocas", não as aceleravam, de escapamento aberto. Mas faziam barulhinho equivalente. Senão equivalente, incomensurável para o Ilhéus primitivo e tranqüilo, no início da década de 30.


O zunido reboava dentro da casa hermeticamente fechada, como se fosse uma caixa acústica. O seu solitário eremita punha-se louco.


Fazia de tudo. Punha algodão nos ouvidos, panos nas janelas. Não eliminava a barulheira atroz.


Mas ele não saia de seu posto. Firme nele. Sem arredar pé da casa e sem abrir as janelas.


Um dia abriu violentamente uma das janelas. Num gesto de desespero. Dela surgiu, abruptamente, desvairado, a gritar e a empunhar uma espingarda. "Parem! Parem, por amor de Deus! Vão embora, senão eu atiro!"


Os meninos prorromperam em gargalhadas estrepitosas. Riram-se muito, mas não se foram. Ficaram, primeiro a rir e a observar. Depois, prosseguiram no rumor das latas, de ferros e demais instrumentos infernais.


O senhor pôs-se a berrar. de forma desconexa. Nem se ouvia o que dizia. Sua voz era inteiramente abafada e encoberta pela algazarra, que foi num crescendo estrepitoso.


De repente, atirou. A esmo. O projétil foi ter ao paralelepípedo. Ricocheteou. E foi atingir um dos garotos, que caiu no solo, com uma mancha vermelha no peito.


Os demais, espavoridos, fugiram.


Nunca mais se ouviu algazarra alguma, em torno da casa do eremita.


Naquele dia, porém, ele saiu. Para ir à Polícia, para ser interrogado.


Ultimado o inquérito, passou-se à fase processual instrutória. Dela, chegou ao julgamento.


Incumbiu-se da defesa o advogado Sílvio Faria. Um profissional experimentado, afeito ao debate. Experimentado e hábil. Muito hábil mesmo.


No dia do julgamento, quando lhe foi dada a palavra, dirigiu-se nos termos de praxe: "Excelentíssimo senhor doutor juiz-presidente do Egrégio Tribunal do Júri desta Comarca de Ilhéus. Nobre representante do Ministério Público. Senhores cidadãos jurados que compõem este respeitável conselho de sentença."


Fez o intróito, sorveu lentamente dois goles d´água e sentou-se.


Esperou alguns segundos e levantou-se pela segunda vez. "Excelentíssimo senhor doutor juiz-presidente do Egrégio Tribunal do Júri desta Comarca de Ilhéus. Nobre representante do Ministério Público. Senhores cidadãos jurados que compõem este respeitável conselho de sentença."


Sentou-se novamente e novamente bebeu os goles d´água que restavam no copo.


Dali a momentos, alçou-se pela terceira vez, para repetir a mesma saudação: "Excelentíssimo senhor doutor juiz-presidente do Egrégio Tribunal do Júri desta Comarca de Ilhéus. Nobre representante do Ministério Público. Senhores cidadãos jurados que compõem este respeitável conselho de sentença."


O juiz impacientava-se. Mexia-se na sua cadeira. Os jurados, um tanto perplexos, também. O advogado sentou-se, uma vez mais e repetiu a mesma cena da água.


Quando se levantou e pela quarta vez, ultimada a saudação inicial, ia tomar a água, foi advertido pela Presidência: "Advirto o digno defensor de não prosseguir desta forma, sob a pena de declarar o réu indefeso e dissolver o conselho de sentença".


O advogado fez ouvidos de mercador.


Repetiu a cena, como se não tivesse havido a advertência.


Aí o juiz perdeu a paciência e as estribeiras. Desatou a censurar o advogado, de forma áspera e indelicada.


Era o que pretendia o advogado, que só então iniciou a defesa:


"Vejam, ilustres juízes de fato que compõem este Júri. O magistrado sereno, o magistrado equilibrado, o magistrado imparcial irritou-se desta maneira porque repetimos, algumas vezes, uma simples saudação. Que dizer, então, deste homem, tantas vezes molestado, tantas vezes importunado? Dias, semanas, meses. Sua reação tinha que ser esta. E a resposta, aparentemente violenta, não podia ser outra."


E foi adiante em suas considerações.


O Júri compreendeu o drama daquele homem. Absolveu-o , por reconhecer estar ele, no momento do crime, com perturbação dos sentidos."

As Mortes de Euclides da Cunha e seu filho




Fonte: Grandes Advogados, Grandes Julgamentos - Pedro Paulo Filho - Depto. Editorial OAB-SP

Evaristo de Moraes

1. Domingo, 15 de agosto de 1909. Na casa de número 214 na Estrada Real de Santa Cruz, na Piedade, no Rio de Janeiro, entra um homem agitado e nervoso. Era Euclides da Cunha, o autor de “Os Sertões”.
Bate palmas, é recebido pelo jovem Dinorah de Assis, a quem manifesta o propósito de avistar o dono da casa, Dilermando de Assis, aspirante do Exército.
Vai logo entrando na sala de visitas. Aí, saca de um revólver e diz: “vim para matar ou morrer!”. Entra no interior da casa e atira duas vezes em Dilermando que, atingido, cai.
Dinorah, vendo o irmão ferido, tenta arrebatar a arma de Euclides. Ouvem-se mais dois disparos. Outro tiro e Dinorah é atingido na coluna vertebral, junto à nuca, que ficaria, posteriormente, inutilizado para o resto da vida.
Dilermando, embora ferido, consegue apanhar o revólver, atira duas vezes sem atingir Euclides. Euclides aperta o gatilho de novo e recebe um tiro de Dilermando que lhe fere o pulso. Duelo de vida e morte. Tiros de ambos os lados e um projétil atinge o pulmão direito de Euclides, que cai morto ao solo.
Assim foi o que se denominou "A Tragédia da Piedade".
2. No dia 4 de maio de 1911, inicia-se o julgamento, perante o Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, de Dilermando de Assis. Seu advogado de defesa foi o grande criminalista Evaristo de Morais. A acusação ficou a cargo do promotor público Pio Duarte.
Depois de fazer a apologia de Euclides da Cunha, o promotor declarou, categoricamente, que o mesmo partiu para a casa onde se achava Dilermando, com a esposa do escritor, Ana, com a evidente intenção de matar ou morrer. O advogado Evaristo de Morais, em aparte, agradeceu aquela confissão do Ministério Público.
Narrou em seguida, o acusador público o diálogo de Euclides com o filho Solon, dizendo ao rapaz que sua mãe era adúltera. Relembrou que ele já havia encontrando a própria mãe em Piedade com o réu, condenando seu comportamento e tentando convencê-la a voltar para a casa da família, onde seria aceita novamente pelo marido, como acontecera anteriormente, mesmo depois de outros episódios de infidelidade.
Declarou o promotor que era direito de Euclides invadir a casa para reaver o filho, que mesmo nascido da união da esposa adúltera com o réu não tivera, porém, sua filiação contestada pelo escritor.
Ressaltou também o depoimento da mulher do escritor, Ana, que, embora elogiasse o marido, chamando-o de homem bom e amoroso, não podia corresponder a essa atenção, pois amava Dilermando, o réu.
Refere-se à confissão de Ana, segundo a qual tivera dois filhos com Dilermando, mas argumenta, longamente, com o fato de ter Euclides o direito de reclamar sua mulher e filhos, responsabilizando Dilermando pelo resultado letal.
Falou que Euclides conhecia os fatos que lhe enodoavam a honra, concluindo que, assim agindo, guardando o segredo de sua desdita, demonstrara que não era um desequilibrado nem um desvairado mas um verdadeiro forte. guardou o segredo de sua mágoa. Demonstrou, assim que não era um desequilibrado nem um desvairado, mas um homem forte. Por último, em nome dos brios do Exército, pediu a condenação de Dilermando de Assis.
3. Pela defesa falou o advogado Delamare Garcia e, em seguida, Evaristo de Moraes. O grande tribuno carioca iniciou a defesa formulando um repto ao promotor público, alegando que, na época, se propalava que o réu Dilermando fora um protegido de sua vítima.
Se a acusação pública conseguisse descobrir nos autos uma frase ou palavra que provasse tal proteção, abondonaria, de imediato, a tribuna de defesa. Se tal ocorresse, não teria aceito o encargo da defesa.
Falou do passado do réu, dizendo que na sua infância fora educado por um tio, conhecido por Quincas Rato. Demonstrou por meio de provas documentais que Dilermando jamais fora socorrido por Euclides da Cunha. Este conhecera Euclides muito tempo depois de ser amante de sua mulher.
Relembrou Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau, aos quais chamou de sinceros por terem confessado os seus pecados carnais. Quem não teve desses pecados aos 17 anos? Em seguida, sustentou a doutrina que admite o adultério, desde que o seu responsável tenha pouca idade, classificando de convenções sociais as manifestações hipócritas dos que não têm coragem de confessar suas fraquezas.
Demorou-se em divagações acerca da diferença da responsabilidade do adolescente e do adulto, citando vários autores, procurando demonstrar que não se pode falar em sinceridade dos atos de um adolescente, porque, o mesmo nunca é imoral nem moral, mas simplesmente amoral.
Divagou sobre a ação da imprensa que rebaixou o réu a categoria de homicida comum. Negou o direito, defendido pelo promotor, de Euclides da Cunha entrar na casa de Dilermando. Falou, por fim, do exercício de legítima defesa por parte do réu, não só em relação à sua própria pessoa, como em defesa da adúltera.
Justificou a impossibilidade de Dilermando fugir, alegando o ridículo do aspirante a oficial fugir em trajes menores, pés nus, dando as costas ao agressor de sua própria casa. A própria lei – argumentou Evaristo de Moraes – sustenta que não se pode fugir, sempre que essa fuga seja vergonhosa e perigosa.
Fez menção ao tiro de misericórdia que Dilermando teria dado, da soleira da porta, quando Euclides já se achava abatido, alegando que não se pode dimensionar a repulsa de um homem atacado com a exatidão absoluta da medida do ataque, lendo vários autores e doutrinadores.
Analisou a alegada condescendência de Euclides da Cunha com o adultério, alegada pelo promotor, aludindo que o grupo social repelia essa condescendência, que seria um verdadeiro menage à trois, só sustentável quando a família estivesse destruída pelo amor livre.
Argumentou que a condenação, ainda que mínima, seria um absurdo, dentro das circunstâncias. Ou tudo ou nada! Se o Júri reconhecesse a culpabilidade do réu, como assassino perverso, ingrato, miserável, que traiu seu protetor que o condenasse; caso contrário, estava na obrigação moral de absolvê-lo. Evaristo de Moraes conclamou os jurados a exercer a sua nobre função, sem medo da opinião alheia e apreciações de censura ou de aplauso.
O Conselho de Sentença reconheceu a legítima defesa adotada pelos defensores e absolveu Dilermando de Assis, em 5 de maio de 1911. Foi posto em liberdade.
No dia 4 de julho de 1916, Dilermando de Assis, já quite com a Justiça, absolvido por duas vezes no processo de homicídio contra o escritor Euclides da Cunha, chegou ao Cartório do 2º Ofício da 1ª Vara de Órfãos da então capital da República, por volta das 13 horas.
Dirigiu-se ao escrevente Meilhac, inquirindo-o sobre a decisão que fora proferida por parte do juiz, a propósito da tutoria de Manoel Afonso Cunha. Em seguida pediu ao escrevente autorização para tomar conhecimento das declarações feitas naquele processo por Nestor da Cunha e, como a resposta fora afirmativa, começou a ler os autos, apoiado no corrimão da grade que divide em duas partes a sala.
Não havia lido ainda as 15 linhas quando ouviu uma detonação atrás de si, sentindo-se ferido – suas pernas fraquejaram e a vista se lhe turvou. Dilermando de Assis voltou-se para a direita e viu recuando um vulto trajado de escuro com o brilho de metais, deixando parecer que se tratava de um aspirante da Marinha.
Apesar de não ter visto o seu rosto, presumiu logo que se tratava de Euclides da Cunha Filho, filho do famoso escritor, o único aspirante da Marinha que podia tentar contra sua vida.
Lembrando-se de que se tratava de um filho da mulher com quem há pouco se casara, e portanto um irmão de seus próprios filhos, procurou retirar-se, dirigindo-se a passos rápidos para a porta da rua, sem no entanto correr.
Percebeu, porém, que seu agressor continuava a disparar a arma e a feri-lo, sem que ninguém o socorresse, mas, ao contrário, fugiam do local apavorados. Sentindo que sua vida corria sério risco, procurou tirar do bolso de sua calça o revólver Smith and Wesson, calibre 32. Com muito custo, disparou contra seu agressor que ainda estava de revólver em punho. Morria o aspirante Euclides da Cunha Filho que tentara vingar a morte do pai.
O Jornal do Comércio de 28 de setembro daquele ano reproduziu a brilhante defesa de Evaristo de Moraes, que, entre outras alegações, se manifestou: "ora, por mais rigoroso que se pretende ser, julgando o tenente Dilermando de Assis, não se pode desconhecer:
1º) que ele tinha sérios motivos para sentir a sua vida em perigo, quando, já gravíssimamente ferido, buscava a porta e era ainda alvejado pelo agressor, que ninguém continha;
2º) que não se lhe apresentara, ao espírito, naquela ocasião, outro meio de escapar à morte, diverso do que empregou;
3º) que ele não estava apenas emocionado, mas, sim, completamente perturbado, em razão das graves lesões recebidas, das quais quatro, porém, eram mortais.
Não cremos haja aí quem pense na possibilidade de fuga para escapar à agressão. Em primeiro lugar, cumpre ter em vista que o primeiro tiro fora disparado com surpresa e os três seguintes enquanto Dilermando não se tinha armado e estava à mercê do agressor. A fuga não mais evitaria, pois, a efetuação do dano à integridade física do agredido. Mas a lei e a doutrina, em verdade, não aconselhavam a fuga em homem nas condições do acusado”.
Depois de relacionar a opinião de vários doutrinadores nacionais e estrangeiros de que a possibilidade de uma fuga vergonhosa ou perigosa não exclui a legalidade da defesa, mas a defesa deixa de ser legal, se é possível escapar à agressão sem ignomínia ou sem perigo, Evaristo de Moraes acentuou: "no caso do tenente Dilermando de Assis, todas essas ponderações jurídicas são acrescidas de uma importantíssima ponderação médico-psicológica: ele não era no momento de principiar a reagir uma pessoa apenas agredida, um oficial militar apenas atacado por um seu inferior; era, já, um homem mortalmente ferido, em cujo organismo se operavam fenômenos depressivos e perturbadores de inegável gravidade e de alta significação refletindo na sua inteligência e na sua vontade. O acusado tinha lesados os dois pulmões, o diafragma e o fígado; o seu aparelho respiratório, de cuja função depende essencialmente a vida, estava prejudicado; não o estavam menos os órgãos circulatórios, também primordiais na manutenção da harmonia vital. (...)
A condenação do acusado, pela recusa da justificativa da legítima defesa, equivaleria, além de tudo, a um triste conselho de covardia e de vilipêndio pessoal, transmitido aos oficiais do brioso Exército Brasileiro".
A Auditoria de Guerra da Capital Federal, em 27 de setembro de 1916, absolveu o acusado com base na justificativa da legítima defesa, prevista no artigo 26, parágrafo 2º, do Código Penal Militar.
Tendo havido apelação ao Supremo Tribunal Militar, este, em 8 de novembro do mesmo ano, decidiu: "um organismo ferido de morte, em quase desfalecimento, reage irregularmente sobre o que o rodeia e assim sem condições de medir a reação... com os fundamentos aludidos, negando provimento à apelação e confirmando a decisão proferida pelo Conselho de Guerra, mandam que o réu seja posto em liberdade".
As defesas produzidas em favor do tenente Dilermando de Assis nos processos de homicídio de Euclides da Cunha e Euclides da Cunha Filho, perante a Justiça Comum e a Militar, constituem um dos pontos mais altos da grande carreira de advogado criminalista de Evaristo de Moraes.



 

O Caso Cláudia Lessin



Fonte: Grandes Advogados, Grandes Julgamentos - Pedro Paulo Filho - Depto. Editorial OAB-SP
Laércio Pellegrino



Os acusados eram Georges Michel Kour e Michel Albert Frank, que se achava foragido no exterior.
O crime aconteceu no Rio de Janeiro, em 24 de julho de 1977, hora não precisada,no interior do apartamento 302, à Rua Desembargador Alfredo Russel, 70, bairro Leblon. A acusação era de que os dois teriam estrangulado com as mãos e desferido pancadas na cabeça de Cláudia Lessin Rodrigues, causando-lhe a morte.


Teriam ainda, ambos, usado de recurso que impossibilitara a defesa de Cláudia, enfiando objeto em orifício de seu corpo de tal maneira que ela não pode opor resistência aos seus agressores, que lhe eram superiores, física e numericamente. Era um caso de homicídio triplicadamente qualificado (artigo 121, parágrafo 2º. Nºs l, lll e lV do Código Penal). O libelo somente se apoiava em documento contestado -–o auto de exame cadavérico.


Convidado pelo advogado Jair Auler, o criminalista Laércio Pellegrino aceitou a defesa de Georges Michel Kour, em substituição ao grande advogado Alfredo Tranjan, que fora nomeado juiz do 2º Tribunal de Alçada do Estado do Estado do Rio de Janeiro.


Logo que assumiu a defesa, peticionou ao juiz do 1º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro manifestando que o processo não estava em ordem para o réu ser levado a julgamento, lembrando a lição de Roberto Lyra: “Mais do que direito individual, a defesa é dever público inscrito, historicamente, entre as prerrogativas humanas. Não se trata, apenas, de integrar o contraditório, como pretende a técnica marginal e rastejante. Deve assegurar-se, efetivamente, a defesa com todos os meios e recursos.


O processo foi retirado da pauta de julgamento, determinando o juiz que o Instituto Médico Legal esclarecesse as graves falhas e omissões do laudo de exame cadavérico de Cláudia Lessin Rodrigues. Iniciava-se assim uma luta longa e estafante do grande criminalista carioca.


O julgamento ocorreu em 1º de dezembro de 1980 e foi considerado o mais longo de todos os do Tribunal do Júri no Brasil, pois durou cinco dias ininterruptos. Presidiu o julgamento o dr. Paulo César Dias Panza, do 1º Tribunal do Júri. Na acusação, funcionou o promotor dr. José Carlos da Cruz Ribeiro, auxiliado pelo assistente da acusação, dr. Osvaldo Mendonça. Na defesa, além do dr. Laércio Pellegrino, atuou o advogado dr. Jair Auler.


O criminalista Laércio Pellegrino iniciou a sua oração dizendo, depois das saudações de praxe: “Impõe-se-nos, de início, lembrar a vossas excelências, no conflito de paixões em que se transformou este processo, neste confuso tumultuar de ardentes sentimentos, que a forte emoção que domina neste instante meu brioso colega de defesa, dr. Jair Auler, não é a do advogado, mas do amigo, pois ele vem acompanhando o réu, que hoje aqui está diante dos senhores, há vários anos, como seu fraternal amigo, vendo-o como vítima de uma obstinada, incessante e ignóbil perseguição, desde a deflagração do chamado Cláudia Lessin. Sabendo que, como amigo de Georges Kour, não resistiria às grandes emoções deste julgamento, chamou-me para defendê-lo.


Haveria, por certo, a necessidade de se ter um advogado nesta Tribuna em condições de proferir a defesa, sem a intensa emoção que domina Jair Auler, levando-o até as lágrimas, num choro convulsivo, clímax de angústia e da expectativa de tudo a que assistiu nestes longos e sofridos anos, em que vem se desenrolando este volumoso processo.


Vou, pois, senhores jurados, procurar honrar a difícil missão que me trouxe a esta Tribuna.


Não sei se irei conseguir responder devidamente aos principais argumentos do nobre promotor público, expostos na ardente acusação que proferiu. Faltam-me por certo, a cultura e inteligência de sua excelência.


Mas vou tentar...


(Olhando para o promotor) “V.Excia. está sorrindo. Alguma coisa, dr. Promotor?”


“Promotor – Estou achando engraçada a cena.”


“Advogado – Ah! A cena é engraçada! Um dos advogados inicia o seu discurso de defesa, com seriedade, cônscio do seu dever profissional, enquanto o outro se refaz da comoção que o levou às lágrimas!


E v.exa. acha graça! V.exa. se diverte! V.exa. é de uma finura encantadora...”


(Risos da platéia)


“Presidente: Eu peço silêncio à platéia, se não mando evacuar o salão.”


Em outra oportunidade, Laércio Pellegrino proclamou:


“De modo, senhores do Júri, o que temos de examinar, neste julgamento, é qual foi a verdadeira participação de réu, aqui presente, no fato que deu origem ao processo.


E, sob o pálio da lei, é-lhe garantido um julgamento justo, isento. A lei assegura a plena defesa e o contraditório, os quais haverão de ser exercidos, quer queiram, quer não.


Há de ser feita a ampla e eficiente defesa por constituir interesse superior de justiça e garantia fundamental num país democrático.


Pois bem, senhores do Júri, no relatório que veio da Suíça, não a pedido nosso, mas do eminente presidente deste Tribunal, observa-se, desse tão propalado relatório, que Michel Frank teve prévio conhecimento do que constava dos autos existentes aqui no Rio de janeiro.


Quando Michel Frank compareceu para interrogatório, isto lá na Suíça, já estava a par das declarações de Georges Kour e das várias testemunhas aqui no Rio de Janeiro.


Por isto, ele pôde conciliar suas declarações, adequadamente, calculadamente, meticulosamente. (...)


Na sua veemente acusação, disse o dr. Promotor : “Os senhores ouviram o psiquiatra que aqui veio, a demonstrar a procedência da acusação.


Ora, senhores jurados, evocar o depoimento daquele psiquiatra, quando os senhores viram e ouviram o espetáculo triste que se procedeu aqui neste Tribunal.


Um psiquiatra que assina um auto, um Auto de Verificação de Substância Tóxica, o qual, entretanto, tem o título e o subtítulo de “Laudo de Exame de Sanidade Mental”. Ele falou aqui que não fez nenhum Laudo de Sanidade Mental, que apenas fez um exame de dependência toxicológica. E disse ele: “Não, foi um erro datilográfico”. Mas está lá o título, em letras de forma, em caixa alta, tanto o título como o subtítulo: “Exame de Sanidade Mental”.


Então, vejam os senhores, é assim que se leva um réu a uma condenação injusta. É assim que se sacrifica a inocência no próprio altar da Justiça. Com peritos incompetentes e sem prática. Com psiquiatras que subscrevem um Laudo de Dependência Toxicológica com o título e subtítulo de “Exame de Sanidade Mental”. E mais, senhores jurados, exibimos aqui uma cópia do Auto de Exames Cadavéricos em que aparece o nome de uma médica, e veio outro médico em plenário, querendo explicar: “Não, houve um erro datilográfico”. Então, senhores jurados, que repartição pública é essa?”


Na sua brilhante peroração, o dr. Laércio Pellegrino, elevando a voz, acrescentou, olhando os membros do Conselho de Sentença: “Os esclarecimentos dados em plenário, de viva voz, pelo médico legista e notável mestre de Medicina Legal, que é o dr. Nelson Caparei, mostraram aos senhores que Cláudia Lessin Rodrigues só poderia ter morrido em decorrência de uma dose excessiva de cocaína! Traumatismo craniano e esganadura não foram a causa da morte, porque o malsinado Auto de Exame Cadavérico não descreveu, tanto na inspeção interna como na externa, as características obrigatórias que pudessem embasar aquela conclusão.


Realmente, o Auto de Exame Cadavérico, a não ser a lacônica afirmação de “espaço subdural com sangue”, nada apurou de anormal no encéfalo, estando o tecido nervoso absolutamente íntegro, como íntegra estava a região craniana.


Quanto ao couro cabeludo, igualmente não apresentava nenhuma lesão, como também nenhuma lesão foi constatada no cérebro, no cerebelo, no bulbo ou na protuberância.


Que traumatismo craniano foi esse, portanto?


Ademais, não foram encontradas no cadáver de Cláudia lesões típicas de esganadura, como, por exemplo, escoriações semilunares, produzidas pelas unhas, e equimoses violáceas devido à compressão digital, fraturas do osso hióide, da traquéia, das cartilagens etc.


Que esganadura foi essa então?


Quanto às escoriações irregulares apresentadas no dorso do cadáver, nas regiões supra-escapular e dorsal direita, pelas suas características, isto é, apergaminhadas, foram produzidas depois da morte, quando o corpo rolou pelas pedras da encosta da Avenida Niemayer.


No tocante à propalada dilatação anal, decorreu do relaxamento dos esfíncteres, o que é natural após a morte. Não foi, igualmente pesquisado esperma nas cavidades vulvo-vaginal e anal, nem constatada nenhuma ruptura da margem do ânus, que se prolongaria para o interior do canal anal, pelo que a alegação da prática de violência sexual contra Cláudia Lessin Rodrigues não passou de outra balela!”


“Presidente: Terminando o seu tempo, doutor.”


“Advogado: Vamos encerrar, senhor presidente.


Senhores jurados! Michel Frank foi para a Suíça porque não acreditava na Justiça do Brasil.


Georges Michel Kour, bem ao contrário, apresentou-se, espontaneamente, para ser preso e julgado aqui no Brasil. Não fugiu.


Poderia tê-lo feito e não o fez.


Por quê? Porque ele acreditou na justiça dos senhores. Porque estava certo de que seria julgado com imparcialidade, a primeira virtude de quem julga e com superioridade, acima dos ódios e paixões que marcaram este processo; porque tinha certeza de que a Justiça não seria destruída pela injustiça nem a verdade pela falsidade; porque sabia que a mais grave missão a ser cumprida pelo homem, que é julgar, seria hoje dignificada. E toda a esperança num julgamento liso e honesto; o anseio em busca de uma decisão onde seria distinguida a origem da culpa e consagrada a inocência; o desejo ardente, enfim, de ter um julgamento que representasse a realização da Justiça, a qual, por isto mesmo, jamais poderia apoiar-se na mentira, toda esta sublime aspiração, confiantemente depositamos em suas mão!”


Houve réplica e tréplica.


Na tréplica, o defensor Laércio Pellegrino proclamou: “É de se esperar, pois, que vv.exas., quando recolhidos à sala secreta e indagados por vários quesitos formulados pelo eminente presidente, dr. Paulo Panza, repilam a indignidade que se pretende fazer com este desgraçado que aqui está.


Esta causa, apesar de todo o alarde que se formou em torno dela, é, na realidade, de fácil solução. Logo no primeiro quesito, o da autoria, vv.exas. deverão responder com a cédula “não”, porque na realidade, não há nenhuma prova idônea, não há nenhuma prova idônea, científica, correta, lisa, honesta, daquela cena descrita no libelo, a qual só existiu mesmo na mente dos acusadores do réu.


Vv.exas., assim decidindo, terão feito aquela justiça proclamada não apenas por nós, advogados de defesa, interessados no desfecho da causa, mas pelos doutos. Já dizia o grande Mittermeyer: “Quando a prova é manifesta, a pena é sempre a conseqüência necessária e ganha com isto a causa da Justiça. Quando, ao contrário, a prova é mal ordenada, a sentença, em lugar da verdade, pode decretar o erro e em lugar do culpado, condenar o inocente. E, não apenas o clássico Mittermeyer, o grande Malatesta, igualmente mestre de todos nós, no seu livro sobre psicologia judiciária, nos dá a grande lição, quando afirma: “A pena que ferir um inocente perturbará mais profundamente a tranqüilidade social do que teria perturbado o crime particular que se procura punir.”


Senhores do Júri, se a Justiça perece, carece de valor que o homem viva sobre a terra. Só podemos viver num ambiente em que seja assegurada a Justiça, porque o que mais engrandece a sociedade é a Justiça que se faz e o que mais entristece e desespera é a Justiça que se nega. Não neguem a Justiça a este desgraçado, respondam “não” aos quesitos que serão formulados pelo eminente juiz-presidente, salvo o referente à tentativa de ocultação do cadáver. E, assim decidindo, terão feito Justiça, nada mais do que isto: Justiça!”


O conselho de sentença negou, por seis votos a um, que Georges Michel Kour fosse o autor do homicídio de Cláudia Lessin Rodrigues, reconhecendo tão-somente o cometimento do deito de ocultação de cadáver sob a forma tentada.


Por esse último crime, o réu foi condenado à pena de um ano e quatro meses de reclusão como incurso nas penas do artigo 211, combinado com o artigo 12, número ll do Código Penal.


Não é de hoje que os advogados criminais – escreveu Laércio Pellegrino – têm enfrentado os mais sérios riscos, só porque procuraram dignificar o seu múnus.


“A história é rica de exemplos de advogados criminais que se expuseram ao perigo, pondo em risco a própria vida, porque não recuaram no cumprimento do dever.


Recorde-se, v. g., na velha Roma, Cícero, que, defendendo Roscio Amerino, acusado por Crisógono, partidário político de Silas, encarou sem medo a figura deste último.


Embora expondo-se à ira do ditador, Cícero não se quedou um só instante.


Lembre-se a bravura de Chaveau-Legarde e Malesherbes perante o Tribunal revolucionário. O primeiro, como defensor de Maria Antonieta e de Danton, saiu da tribuna direto para o cárcere, porque tivera a coragem da verdade.


O segundo, defendendo Luís XVI, pagou com a vida a honra de haver defendido o seu rei.


Ainda na França, nos vem o exemplo de Berryer que, numa época em que o ódio e a vingança contaminaram os corações dos homens, aceitou a defesa do marechal Ney com a mesma tranqüila resolução com que afrontou Napoleão para defender o General Dupont. Mas outras lições de intrepidez na atuação de advogados criminais ainda nos vêm da França, com Labori e Lachaud. O primeiro, defendendo Dreifus, foi alvejado por vários disparos de arma de fogo, partidos da multidão que, envenenada por uma sórdida campanha difamatória contra o jovem oficial do Exército, acusado de alta traição à pátria, se colocara à porta do Tribunal, aguardando a sua saída, para apupá-lo. O segundo, defendendo Jacques Besson, perante o Júri de Rodamo, ao se retirar do Tribunal, precisou ser protegido por soldados contra a hostilidade da malta ignara, cega pela paixão excitada pela revolta. Tal fato se deu em Constantine, no processo do infeliz Chambrige.”



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Caso Claudia Lessin Rodrigues

  A morte de Claudia Lessin Rodrigues deixou o país inteiro estarrecido. Em julho de 1977, o corpo da moça foi encontrado próximo à praia do Leblon, no Rio de Janeiro. Ela havia sido atirada dos penhascos da Avenida Niemeyer, dentro de um saco plástico cheio de pedras. Apontado como suspeito, o milionário Michel Frank negava ter ligação com o crime. VEJA revelou que, na noite em que morreu, Claudia participara de uma orgia animada com cocaína na casa de Frank. O rapaz confessara a um médico – entrevistado por VEJA – que vira a moça morrer de overdose e, descontrolado, tentara sumir com o corpo, jogando-o ao mar. Frank acabaria fugindo para a Suíça, onde foi morto em 1989.

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